Comentário Litúrgico
4º Domingo da Quaresma
Domingo, 19 de março de 2023
Evangelho (Jo 9,1-41)
Eu sou a luz do mundo, diz o Senhor:
quem Me segue terá a luz da vida.
O nosso texto não é uma reportagem jornalística sobre a cura de um cego; mas é uma catequese, na qual se apresenta Jesus como a "luz" que veio iluminar o caminho dos homens. O "cego" da nossa história é um símbolo de todos os homens e mulheres que vivem na escuridão, privados da "luz", prisioneiros dessas cadeias que os impedem de chegar à plenitude da vida. A reflexão apresenta-se em vários quadros.
No primeiro quadro (vers. 2-5), Jesus apresenta-se como "a luz do mundo". Jesus e os discípulos estão diante de um cego de nascença. De acordo com a teologia da época, o sofrimento era sempre resultado do pecado; por isso, os discípulos estavam preocupados em saber se foi o cego que pecou ou se foram os seus pais. Jesus desmonta esta perspectiva e nega qualquer relação entre pecado e sofrimento. No entanto, a ocasião é propícia para ir mais além; e Jesus aproveita-a para mostrar que a missão que o Pai lhe confiou é ser "a luz do mundo" e encher de "luz" a vida dos que vivem nas trevas.
No segundo quadro (vers. 6-7), Jesus passa das palavras aos atos e prepara-se para dar a "luz" ao cego. Começa por cuspir no chão, fazer lodo com a saliva e ungir com esse lodo os olhos do cego. O gesto de fazer lodo reproduz, evidentemente, o gesto criador de Deus de Gn 2,7 (quando Deus amassou o barro e modelou o homem). A saliva transmitia, pensava-se, a própria força ou energia vital (equivale ao sopro de Deus, que deu vida a Adão - cf. Gn 2,7). Assim, Jesus juntou ao barro a sua própria energia vital, repetindo o gesto criador de Deus. A missão de Jesus é criar um Homem Novo, animado pelo Espírito de Jesus.
No entanto, a cura não é imediata: requer-se a cooperação do enfermo. "Vai lavar-te na piscina de Siloé" - diz-lhe Jesus. A disponibilidade do cego em obedecer à ordem de Jesus é um elemento essencial na cura e sublinha a sua adesão à proposta que Jesus lhe faz. A referência ao banho na piscina do "enviado" (o autor deste texto tem o cuidado de explicar que Siloé significa "enviado") é, evidentemente, uma alusão à água de Jesus (o enviado do Pai), essa água que torna os homens novos, livres das trevas/escravidão. A comunidade joânica pretenderá, certamente, fazer aqui uma catequese sobre o baptismo: quem quiser sair das trevas para viver na luz, como Homem Novo, tem de aceitar a água do baptismo - isto é, tem de optar por Jesus e acolher a proposta de vida que Ele oferece.
Depois, o autor do texto coloca em cena várias personagens; essas personagens vão assumir representar vários papéis e assumir atitudes diversas diante da cura do cego.
Os primeiros a ocupar a cena são os vizinhos e conhecidos do cego (vers. 8-12). A imagem do cego, dependente e inválido, transformado em homem livre e independente, leva os seus concidadãos a interrogar-se. Percebem que de Jesus vem o dom da vida em plenitude; talvez anseiem pelo encontro com Jesus, mas não se atrevem a dar o passo definitivo (ir ao encontro de Jesus) para ter acesso à "luz". Representam aqueles que percebem a novidade da proposta que Jesus traz, que sabem que essa proposta é libertadora, mas que vivem na inércia, no comodismo e não estão dispostos a sair do seu "cantinho", do seu mundo limitado, para ir ao encontro da "luz".
Um outro grupo que aparece em cena é o dos fariseus (vers. 13-17). Eles sabem perfeitamente que Jesus oferece a "luz"; mas recusam-na liminarmente. Para eles, interessa continuar com o esquema das "trevas". Representam aqueles que têm conhecimento da novidade de Jesus, mas não estão dispostos a acolhê-la. Sentem-se mais confortáveis nos seus esquemas de escravidão e auto-suficiência e não estão dispostos a renunciar às "trevas". Mais: opõem-se decididamente à "luz" que Jesus oferece e não aceitam que alguém queira sair da escravidão para a liberdade. Quando constatam que o homem curado por Jesus não está disposto a voltar atrás e a regressar aos esquemas de escravidão, expulsam-no da sinagoga: entre as "trevas" (que os dirigentes querem manter) e a "luz" (que Jesus oferece), não pode haver compromisso.
Depois, aparecem em cena os pais do cego (vers. 18-23). Eles limitam-se a constatar o acontecimento (o filho nasceu cego e agora vê), mas evitam comprometer-se. Na sua atitude, transparece o medo de quem é escravo e não tem coragem de passar das "trevas" para a "luz". O texto explica, inclusive, que eles "tinham medo de ser expulsos da sinagoga". A "sinagoga" designava o local do encontro da comunidade israelita; mas designava, também, a própria comunidade do Povo de Deus. Ser expulso da "sinagoga" significava a excomunhão, o risco de ser declarado herege e apóstata, de perder os pontos de referência comunitários, o cair na solidão, no ridículo, no descrédito e na marginalidade. Preferem a segurança da ordem estabelecida - embora injusta e opressora - do que os riscos da vida livre. Representam todos aqueles que, por medo, preferem continuar na escravidão, não provocar os dirigentes ou a opinião pública, do que correr o risco de aceitar a proposta transformadora de Jesus.
Finalmente, reparemos no "percurso" que o homem curado por Jesus faz. Antes de se encontrar com Jesus, é um homem prisioneiro das "trevas", dependente e limitado. Depois, encontra-se com Jesus e recebe a "luz" (do encontro com Jesus resulta sempre uma proposta de vida nova para o homem).
O relato descreve - com simplicidade, mas também de uma forma muito bela - a progressiva transformação que o homem vai sofrendo. Nos momentos imediatos à cura, ele não tem ainda grandes certezas (quando lhe perguntam por Jesus, responde: "não sei"; e quando lhe perguntam quem é Jesus, ele responde: "é um profeta"); mas a "luz" que agora brilha na sua vida vai-o amadurecendo progressivamente. Confrontado com os dirigentes e intimado a renegar a "luz" e a liberdade recebidas, ele torna-se, em dado momento, o homem das certezas, das convicções; argumenta com agilidade e inteligência, joga com a ironia, recusa-se a regressar à escravidão: mostra o homem adulto, maduro, livre, sem medo... É isso que a "luz" que Jesus oferece produz no homem.
Finalmente, o texto descreve o estádio final dessa caminhada progressiva: a adesão plena a Jesus (vers. 35-38). Encontrando o ex-cego, Jesus convida-o a aderir ao "Filho do Homem" ("acreditas no Filho do Homem?" - vers. 35); a resposta do ex-cego é a adesão total: "creio, Senhor" (vers. 38). O título "Senhor" ("kyrios") era o título com que a comunidade cristã primitiva designava Jesus, o Senhor glorioso. Diz, ainda, o texto, que o ex-cego se prostrou e adorou Jesus: adorar significa reconhecer Jesus como o projecto de Homem Novo que Deus apresenta aos homens, aderir a Ele e segui-l'O.
Neste percurso está simbolicamente representado o "caminho" do catecúmeno. O primeiro passo é o encontro com Jesus; depois, o catecúmeno manifesta a sua adesão à "luz" e vai amadurecendo a sua descoberta... Torna-se, progressivamente, um homem livre, sem medo, confiante; e esse "caminho" desemboca na adesão total a Jesus, no reconhecimento de que Ele é o Senhor que conduz a história e que tem uma proposta de vida para o homem... Depois disto, ao cristão nada mais interessa do que seguir Jesus.
A missão de Jesus é aqui apresentada como criação de um Homem Novo. Deus criou o homem para ser livre e feliz; mas o egoísmo, o orgulho, a auto-suficiência, dominaram o coração do homem, prenderam-no num esquema de "cegueira" e frustraram o projecto de Deus. A missão de Jesus consistirá em destruir essa "cegueira", libertar o homem e fazê-lo viver na "luz". Trata-se de uma nova criação... Assim, da acção de Jesus irá nascer um Homem Novo, liberto do egoísmo e do pecado, vivendo na liberdade, a caminho da vida em plenitude.