O resgate de São Tomé
São Tomé é uma figura que costuma ser apresentada como símbolo do ceticismo: Já há até uma frase feita: “Ver para crer, como Tomé”. E, no entanto, Tomé é um dos personagens mais comoventes do Evangelho. Vamos procurar compreender, nesta meditação, que, em boa parte, Tomé é um injustiçado. Como é que era mesmo Tomé na realidade? Que nos diz dele o Evangelho?
Para começar o “resgate” de Tomé (que resgata os bons exemplos que nos dá), é preciso dizer que, dele, sabemos uma coisa certa, e é que foi um dos idealistas que, deixando todas as coisas, seguiram Jesus. Portanto, confiava em Jesus, acreditava nele – senão, não teria largado tudo e apostado nele – ; além disso, tinha-lhe amor, pois ninguém se entrega nas mãos de uma pessoa que lhe é indiferente; e era generoso.
Logicamente era humano, e, portanto, tinha fraquezas como aliás todos os Apóstolos, como todos nós. Mas, antes da Paixão de Jesus, o Evangelho mais nos mostra nele fortaleza que fraqueza. Refiro-me àqueles momentos críticos – pouco antes da Paixão – , em que Jesus já era perseguido de morte em Jerusalém e teve de retirar-se para além do Jordão, juntamente com os Apóstolos, porque ainda não tinha chegado a sua hora. O que lá aconteceu é tocante…
Naquele lugar retirado, Jesus recebeu o recado de Marta e Maria, pedindo-lhe que fosse de novo a Jerusalém (a Betânia, pertíssimo de Jerusalém), porque seu irmão Lázaro estava muito doente: Senhor, aquele que amas está enfermo. Jesus, no entanto, deixou-se ficar ali ainda dois dias. Mas, de repente, disse: Voltemos para a Judéia. Isso assustou os discípulos: Mestre – disseram-lhe –, há pouco os judeus te queriam apedrejar, e voltas para lá? Jesus não ligou, e disse-lhes abertamente que Lázaro já tinha morrido, mas –acrescentou – vamos a ele. Todos ficaram gelados, pensando que aquilo era pôr-se na boca do lobo…
Todos menos um! Tomé! Só ele, cheio de coragem, foi capaz de dizer aos seus condiscípulos: Vamos também nós, e morramos com ele! Estava disposto a morrer com Jesus, por Jesus. Como vemos, no coração de Tomé não há nada de covardia, nem de dúvidas, nem de vacilações.
Coração sincero
E ainda há um outro traço do caráter de Tomé que o Evangelho põe em relevo.Tomé era um homem que era sincero e gostava da objetividade. Não era daquele tipo de homens que são “objetivos” só para pôr dificuldades, tirar o corpo e dizer que não dá (“sou realista”, dizem, e, na realidade, são pessimistas ou comodistas). Ele gostava da objetividade para entender melhor as coisas e, assim, poder agir melhor e resolver melhor os assuntos. Isso não diminuía nem um pouco a fé que tinha em Jesus. Tomé unia a fé ao realismo, um binômio excelente em si mesmo…, mas que pode desequilibrar-se, e então se torna perigoso (como logo veremos). É algo que fica bem claro na Última Ceia.
Naquela noite da Quinta-feira Santa, Jesus estava despedindo-se dos seus discípulos, e consolava-os com infinita ternura dizendo-lhes: Não se perturbe o vosso coração. Na casa de meu Pai há muitas moradas …; vou preparar-vos um lugar. Depois de ir e vos preparar um lugar, voltarei e tomar-vos-ei comigo… E vós conheceis o caminho para onde eu vou. Neste ponto interveio Tomé, com a sua franqueza um pouco brusca, mas cheia de confiança em Jesus: Disse-lhe Tomé: Senhor, não sabemos para onde vais. Como podemos saber o caminho? Jesus não levou a mal essa pergunta nem a achou indelicada. Ao contrário, tomou pé dela para dizer umas palavras que ficarão para sempre gravadas no coração do cristão: Jesus respondeu-lhe: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vai ao Pai senão por mim”.
Mas houve um outro momento crucial, em que esse realismo franco de Tomé… espanou. Foi após os acontecimentos perturbadores da Paixão, quando Jesus já havia ressuscitado (e daí vem a “má fama” de Tomé).
Lembremos o que aconteceu. Na tarde do domingo de Páscoa, em que Jesus apareceu aos Apóstolos no Cenáculo, Tomé – diz o Evangelho – não estava com eles. Ou seja, não viu Jesus. Provavelmente, chegou bem mais tarde, naquela noite, ou então só voltou à casa no dia seguinte. Podemos imaginar que chegou ao Cenáculo triste, com olheiras de pouco dormir e o ricto amargo na boca de muito sofrer. Pois bem, mal acabava de subir a escada até o segundo andar – a sala de cima –, quando os outros que lá estavam se lhe atiraram em cima, agitadíssimos, dizendo: Vimos o Senhor!
Pobre Tomé! Aquela enxurrada de entusiasmo, totalmente inesperada, caiu-lhe como um golpe de malho na cabeça. Deixou-o atordoado. Eu o imagino de olhos arregalados, assustado com a estranha euforia dos outros, balbuciando: “Estão loucos! Vocês perderam o juízo?” E o bom Tomé, o sofrido Tomé, o franco Tomé, de repente embirrou. A sua tendência para o realismo e a objetividade saiu dos eixos, extrapolou em casmurrice e desequilibrou-se: Mas ele replicou-lhes: Se não vir nas suas mãos o sinal dos pregos, e não puser o meu dedo no lugar dos pregos, e não introduzir a minha mão no seu lado, não acreditarei! Emburrou, e não havia modo de fazê-lo sair atitude fechada.
O amor que faz duvidar
Vemos nessa atitude só um defeito? Será que não poderíamos pensar que era tão grande o carinho de Tomé por Jesus, que não agüentava pensar sequer na possibilidade de que houvesse um engano? Não tinha coragem para deixar que a sua esperança subisse a mil por hora como um foguete, na crença de que Jesus vivia, para depois cair vertiginosamente e espatifar-se no chão, na decepção. E se tudo não passasse de histeria dos amigos? Não esqueçamos que, às vezes, a alegria dá medo. Temos tanto receio de embarcar numa alegria grande que depois nos possa decepcionar! Por isso, quando desejamos muito, muito mesmo, uma coisa que nos promete enorme alegria, temos a tendência instintiva de começar a pensar nas coisas “ruins” que poderão acontecer: vai surgir um imprevisto, vai falhar na última hora, vou chegar atrasado, não vai dar certo…
Isso pode explicar a reação negativa de Tomé. No entanto, é preciso reconhecer que houve mesmo uma falha. De fato, Jesus teve de corrigi-lo… E, do erro dele, nosso Senhor quis que nós aprendêssemos. Ele sempre tira o bem de tudo, mesmo do mal.
Em que consistiu seu erro? Naquela hora decisiva, faltaram-lhe a fé e a esperança sobrenaturais. Tomé quis ser tão realista, tão terra-a-terra – para se garantir – , que só ficou vendo o que tinha debaixo dos pés e na ponta do nariz. Isto é o que acontece com todos os que se chamam a si mesmos “realistas”, gente de “pé no chão”, “experientes” e “conhecedores da vida”…, e se esquecem de que a coisa mais “realista” que há no mundo é a presença viva de Deus, o seu poder e a sua ação amorosa… e muitas vezes inesperada e desconcertante.
Um realismo que se torna pessimismo
É interessante observar que todos os pessimistas se chamam a si mesmos realistas e desprezam os “sonhadores” (assim chamam aos que vivem da fé), como se fossem ingênuos ou tolos. Felizmente, nós cremos no Deus da esperança, e por isso somos necessariamente otimistas.
Cristo quer, sem dúvida, que vivamos uma vida realista, mas contando com o “fator” mais real de todos, que é Ele e a força assombrosa do seu amor e da fidelidade às suas promessas. Assim o expressa, de maneira maravilhosa, a Carta aos Hebreus: A fé é o fundamento das coisas que se esperam, é uma certeza a respeito do que não se vê. Foi ela que fez a glória dos nossos antepassados. A falta desta fé no amor e nas promessas de Deus traz consigo a falta da esperança que a fé deveria gerar. Este foi o motivo da repreensão afetuosa que Jesus deu a Tomé. E deu-a com razão, pois Tomé não soube pôr toda a sua fé nas promessas anteriores de Cristo – voltarei a vós…., ao terceiro dia o Filho do homem ressuscitará… –; e não deu crédito ao testemunho dos outros Apóstolos que, por ser unânime, merecia confiança.
Mas a repreensão de Jesus, como todas as suas palavras e atos, é uma grande luz para a nossa alma. Vejamos o que diz o Evangelho:
Oito dias depois (da aparição aos Apóstolos no dia da Páscoa), estavam os seus discípulos outra vez no mesmo lugar e Tomé com eles. Estando trancadas as portas, veio Jesus, pôs-se no meio deles e disse: “A paz esteja convosco”… Podemos imaginar a cara de espanto do nosso Tomé… O seu coração deve ter ficado acelerado, quase que a estourar-lhe o peito, quando Jesus se dirigiu pessoalmente a ele. Depois, Jesus disse a Tomé: “Introduz aqui o teu dedo, e vê as minhas mãos. Põe a tua mão no meu lado, e não sejas incrédulo, mas homem de fé! E, apanhando a mão de Tomé, fez como estava dizendo.
A reação de Tomé, caindo em lágrimas aos pés de Jesus, foi esplêndida: Respondeu-lhe Tomé: “Meu Senhor e meu Deus!” Ele, que tinha duvidado, acabou fazendo o maior ato de fé até então pronunciado por qualquer dos Apóstolos: um ato de fé absolutamente explícita, luminosa, na divindade de Cristo: Meu Deus! E Jesus encerrou a questão, pensando em nós, em todos os que haveríamos de ser os seus discípulos, no decorrer dos séculos: Creste porque me viste. Felizes aqueles que crêem sem terem visto!
O lado luminoso da lição de Tomé
É como se, com as palavras que dirigiu a Tomé, Cristo nos perguntasse: “Você crê mesmo em mim?” “Você, por crer em mim, sabe esperar nas coisas que não se vêem, que só se prevêem com a fé, sabe esperar nas coisas que Deus quer, mas que os “realistas” chamam “impossíveis?” Vale a pena lembrar o que escreve São Paulo: Porque pela esperança é que fomos salvos. Ora, ver o objeto da esperança já não é esperança; porque o que alguém vê, como é que ainda o espera?[1]
Deus – por assim dizer – “desafia-nos” a viver de esperança, a saber esperar do seu amor coisas grandes que não vemos, coisas que nos parecem impossíveis, mas que Ele nos quer dar. Mesmo diante das maiores dificuldades, todos podemos dizer com São João: Nós conhecemos o amor de Deus, e acreditamos nele.
O “realismo” cristão está feito de fé, de audácia e de magnanimidade. O nosso realismo é a esperança. Aí está o segredo do otimismo do cristão. É preciso que, aquecidos pela fé, pelo amor e pela esperança, saibamos apontar alto, apontar para coisas grandes, para ambições santas, e confiar plenamente em Deus. A mulher de fé, o homem de fé, confia sobretudo em dois pilares fortíssimos sobre os quais se apóia a esperança cristã: a obediência a Deus (fazer o que sabemos que Deus nos pede), e a oração (pedir com a fé com que um filho pede a um pai de cujo amor não duvida). Apoiada na obediência e na oração, a nossa esperança ficará, como diz o Livro da Sabedoria”, cheia de imortalidade.
Há alguns exemplos, no Evangelho, que ilustram tudo isto muito bem. Hoje vamos focalizar apenas um deles, que é especialmente claro e tocante.
Generosidade e esperança
Todos nos lembramos, provavelmente, da passagem do Evangelho que narra a primeira multiplicação dos pães. E talvez tenhamos presente a figura encantadora daquele menino – de que fala São João no capítulo sexto do seu Evangelho –, que colaborou com o milagre.
Mais de cinco mil pessoas estavam certa vez em um lugar afastado, ouvindo Jesus. Passou o tempo e sentiram fome. Percebendo isso, o Senhor disse aos Apóstolos que lhes dessem de comer. Mas como poderiam fazê-lo? Não havia nem pão nem dinheiro para comprá-lo. De repente, André apareceu trazendo pela mão um garoto, que estava, ao mesmo tempo, feliz e meio encabulado: “Eu posso dar – assim deve ter falado o menino a André – cinco pães de cevada e dois peixes”. Ao vê-lo, Jesus sorriu, pegou os pães e os peixinhos, e deu a entender a todos que tudo estava resolvido. Mandou sentar na relva todo o mundo, pediu aos Apóstolos que repartissem os cinco pães e os dois peixes e … comeram todos à vontade e ainda sobraram doze cestos! Um milagre apoiado num “impossível”, numa oferenda pequena, mas cheia de amor, de generosidade…
Não é clara a mensagem? Cristo – com esse milagre – diz-nos: “Não desanime se acha que não tem meios para resolver os problemas, para sair de uma situação de pecado, para ajudar um filho ou um amigo, se acha que não tem capacidade para aliviar as necessidades de tantas pessoas que carecem de tudo e sofrem; ou para fazer apostolado; ou que não tem forças para adquirir dterminadas virtudes. Tenha confiança em mim, e faça da sua parte o que puder, ainda que seja pouquinho…; mas que seja tudo o que pode mesmo, como o menino que deu tudo o que tinha. O resto – acrescenta Jesus – é comigo.
Concluindo esta meditação, não vemos que o maior e melhor realismo do mundo é ter fé e confiança em Deus? As pessoas que agem “como se Deus não existisse, ou não visse, ou não amasse” caem na e mais trágica falsificação da realidade. As pessoas que ainda não perceberam que a oração é infinitamente mais forte que a energia atômica e que o poder quase ilimitado do dinheiro, estão fora da realidade. As pessoas que não percebem que a maior garantia de que receberão os dons de Deus é obedecer a Deus – obedecendo ao seu Evangelho e à sua santa Igreja – estão fora da objetividade. Não nos deixemos dominar nunca – ainda que a nossa vida atravesse momentos muito difíceis – por uma visão acanhada e míope. Peçamos a Tomé que nos ajude a ser os “realistas da esperança”, que com certeza ele nos acudirá. Tem experiência…
[Adaptação do texto do capítulo quatro do livro de Francisco Faus: Cristo, minha esperança, Quadrante 2003]
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1 Parece-me oportuno esclarecer que esse texto foi escrito em 2003, quatro anos antes de que a Encíclica Spe salvi, de Bento XVI, fosse publicada. Preferi não adaptá-lo a esse grande documento pontifício, mas conservar a simplicidade do conteúdo original.